quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tropa de Elite sob ótica ceticista

Por uma leitura cética de Tropa de Elite
por Jason Manuel Carreiro


“Bombs are flying while we’re sleeping with the enemy.”

(R. Schenker, J. Michael, D. Child, John 5 – Humanity Hour 1)


“As bombas estão voando, enquanto dormimos com o inimigo”. A frase pode parecer batida, mas nunca soou tão próxima, nunca fez tanto sentido. Afinal, após ver o filme brasileiro mais polêmico dos últimos anos, Tropa de Elite (Brasil, 2007, Direção de José Padilha), muita gente foi arrebatada por um furor imenso, como se tivessem acordado de um sonho. Faz tempo que não vejo um filme provocar tanta discussão, seja na televisão, na internet ou nos periódicos impressos. E tudo porque quem assistiu ao filme, acordou de um longo sono: cada ato desdobra-se numa série intrincada de relações. Perceberam que somos todos responsáveis pelo que fazemos, que somos responsáveis por aqueles com quem convivemos, e, como dizia o filósofo lituano Emmanuel Lévinas, somos sempre responsáveis por um terceiro, seja ele quem for.

Pois Tropa de Elite foi capaz de fazer com que celebridades, estudantes, jornalistas, acadêmicos, etc. se confrontassem em embates ideológicos dos mais diversificados, alguns, em minha opinião, muito bons, outros, nem tanto.

Uns chamaram a atenção para o clima de guerra vivido nas favelas do Rio, outros destacaram a intrincada rede criminosa que comanda as favelas. Alguns reclamaram da truculência policial, chegando ao absurdo ponto de chamar o filme de reacionário, como se ele fosse panfletário da tortura, dos maus-tratos policias. Outros defenderam o filme, o elevaram à categoria de grande arte, outros, horrorizados, começaram a pensar em que medida eles próprios financiam o tráfico, em que medida são (somos) responsáveis por esta complicada rede.

O mérito do filme, a meu ver, consiste justamente nisso: assim como o excelente Ônibus 174 (do mesmo diretor), ele nos proporciona uma série de indagações interessantíssimas, nos levou à reflexão (algo não muito comum no cinema contemporâneo consumido pelo grande público). Só não vi, ainda, nenhuma leitura cética acerca do filme. E é esta leitura a que me parece a mais adequada.

Muito se associa o ceticismo a alguma espécie de pessimismo, niilismo, como ocorre num conhecido artigo de Affonso Romano de Sant’anna: para o poeta, “o cético não faz história”. Realmente o cético não faz história, e isso não é lá algo ruim. O cético está na história não para tomar partido, mas para se jogar à incansável aventura do pensar, não tomando partido em favor de um ou outro, mas permitindo-se aventurar pelo paradoxo entre uma coisa e outra. Há uma diferença entre o ceticismo Pirrônico e Socrático (de saber que nada se sabe) e o ceticismo moderno (que não toma partido entre um lado ou outro, apenas cumpre o seu compromisso de conduzir à reflexão, entre um lado ou outro).

Pois a transformação do policial André Matias (vivido, brilhantemente, diga-se, pelo ator André Ramiro) de um sujeito inteligente, comedido, dedicado, num truculento policial do BOPE, parece-me a ilustração de que não há verdades no mundo em que possamos nos apoiar. Afinal, ninguém poderia imaginar que o quase pacato policial militar e estudante de Direito pudesse ceder a um impulso vingativo frio, e não digo muito mais para não arruinar com a expectativa de quem ainda não viu o filme. Quem viu, entenderá bem o que quero dizer.

Pois não se trata de tomar partido junto dos traficantes, não se trata de vibrar com a ação violenta dos policiais – trata-se, muito mais, de um belo convite à reflexão. E nisso, o filme é muito bem-sucedido. Apenas lamento àqueles que tentam encerrar as questões, lamento que eles se engalfinhem e gastem seus neurônios com teorias diversas, no intuito de chegar a algum lugar, no intuito de defender pontos de vista. Não perceberam, mas estão imersos num cenário de guerra iminente, ao tentar defender um lado ou outro. Deveriam usar as teorias para brincar, fazer uma ciência alegre, aliar reflexão à vida. Espanta-me aqueles que defendem a tortura como modo de repressão, embora eu concorde que não dá pra encarar bandidos com flores. Há alguma solução viável? Há algo que se possa fazer? Muito já se disse que “descriminalizar” as drogas seria uma solução. Será mesmo? Não sei responder às questões. Como diz o professor da UERJ e escritor Gustavo Bernardo Krause, quando crescer, quero ser cético. Não posso encerrar as questões, não quero guerrear. E veja, não posso ser acusado de covarde. Afinal, o meu compromisso é com o pensar. O meu compromisso é com as interrogações, e lamento, muito mesmo que professores tentem impor as suas visões sobre o filme para os alunos, que pessoas escrevam cartas dizendo que o filme é “de direita” como se ele fosse um panfleto, que pessoas digam que isso ou aquilo é a solução para os problemas. Estas pessoas esquecem-se de que o filme é uma obra de arte, convite à reflexão, e que o caminho percorrido quando elaboramos questões, é muito mais importante do que, propriamente, responder a essas questões.

E se esquecem de que este é o papel da boa arte, como é o filme Tropa de Elite: nos convidar a refletir, discutir, sem tentar esgotar as questões, pois não há respostas definitivas. É à deliciosa aventura do pensar que devemos convidar os nossos jovens, mostrando-lhes diversas possibilidades e caminhos que possam percorrer no intuito de dialogar com o todo da nossa cultura. Afinal, nos posicionar sobre determinado assunto é necessário, mas impor o nosso ponto de vista, isso sim, é reacionário.

Podem até dizer que estou caindo em contradição, os polemistas (sempre os há) dirão que caí na minha própria armadilha, escrevendo esta exortação ao ceticismo. Daí afirmar que quero ser cético quando crescer, pois o ceticismo, pleno, é mesmo impossível. E como jamais vou crescer, fico à vontade para dizer que este texto não é uma exortação ao ceticismo – é apenas mais um convite à reflexão. Não entendeu? Que tal reler?


Jason Manuel Carreiro (Belo Horizonte, MG). Escritor, professor de Filosofia, literatura e língua inglesa. Doutorando em Letras, na PUC Minas, Belo Horizonte, MG. E-mail: jasoncarreiro@hotmail.com

Fonte:
Cronópios

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