Triste, denso e belo
por Jeová Santana
Este ano saí de casa para ver, duas vezes cada, três filmes brasileiros: “Os Dozes Trabalhos” (Ricardo Elias), “O Cheiro do Ralo” (Heitor Dhalia) e “Mutum” (Sandra Kogut). Este, o mais recente, apresenta algumas voltagens emotivas que ainda repercutem e guiam o correr dessas linhas marcadamente impressionistas. Tal escolha não se deve, em princípio, à afinidade com Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), ensaísta, cinéfilo e contista tardio, cuja obra vem sendo reeditada com o cuidado editorial à altura de seu legado. O autor de “Três Mulheres de Três PPPÊS” afirmou que o filme brasileiro, mesmo ruim (o que não é o caso dos que citei), teria sempre algo a dizer sobre nós, daí preferi-lo a qualquer um feito nos Estados Unidos. Pinçada assim, sem referências contextuais, tal reflexão pode despertar, de saída, alguns pruridos ufanistas, mas sabemos que a produção da (ainda) chamada Sétima Arte em terras americanas, não existe somente na linha de montagem de Hollywood, cujo selo final é impresso todo ano naquela patacoada chamada Oscar. A parcela lá produzida que fica fora do chamado “circuitão” é do conhecimento de poucas retinas.
Talvez minha opção pelo produto nacional se deva, de inicio, a recusa à “estética da ligeireza”, marca registrada nas terras de Spielberg & Cia, ao qual já me deixa cansado antes da hora. Qualquer coisa na linha “300” ou “Máquina mortífera” embaralha-me as vistas e não saio do meu recanto sacrossanto para seu ninguém. Nesse sentido, também não me animei a encarar o tiroteio e o corre-corre de “Tropa de Elite”.
Para quem está acostumado com esse tipo opção artístitca, dará nos nervos passar 95 minutos, vendo a leitura que a diretora Sandra Kogut, a roteirista Ana Luiza Martins Costa, o fotógrafo Mauro Pinheiro Jr., o sonoplasta Márcio Câmara, entre outros, fizeram para “Miguilim”, que integra o livro “Campo Geral”, de Guimarães Rosa (1908-1967). O primeiro incômodo vem pelos olhos. Pois os acostumados a viver cercado de prédios por todos os lados, o que torna a palavra “horizonte” apenas um verbete nos dicionários, estranha se vê frente a frente com tanto descampado, logo depois de se sentir na garupa do cavalo que conduz o menino Thiago e seu tio Terez de volta para casa.
O segundo fica por conta da audição, pois depois do trote e do resfolegar, o espectador convive com a profusão de sons de todos os tipos: chuva, vento, raios, trovões, pingueiras, insetos, passos, gemidos, água de rio, bater de portas e janelas, passarinhos, milho de pipoca espocando, aboios, latidos. É uma sinfonia que desestabiliza ouvidos acostumados ao ramerrão dos canos de escapamento e dos bate-estacas. Como contraponto à longa enfiera de ruídos, vem outra gastura diante de várias cenas em que o silêncio se impõe: carinho entre mãe e filho (num close de alta sensibilidade), o enquadramento da casa, a mãe refletindo, a avó Izidra sentada na cama depois de arrumar os trens do neto morto.
Paralelo ao ritmo sonoro, a narrativa vai sendo conduzida com a apresentação de um mote aparentemente parco: um triângulo amoroso, cujo desfecho, pelas leis num tempo e espaço no qual imperam macheza e brutalidade, só pode se encaminhar para a tragédia. Mas, aí, para contrabalançar a crise iminente, o narrador insere o menino Thiago, que será o responsável para prolongar ou interromper a trama, pois fica no fogo-cruzado entre o suposto envolvimento da mãe com o tio. Este, ao contrário do pai, que o cala, ora não respondendo suas perguntas, ora descendo-lhe a mão sem dó nem piedade, é só carinho e não o acusa de “querer ser diferente”.
O ponto culminante da tensão construída com sutileza está na cena em que o sobrinho devolve ao tio o bilhete que deveria ter sido entregue à mãe. O choro com que expõe seu fracasso é um desses momentos sublimes da arte. Sentir-se tocado por ela é saber que ainda temos umas réstias de humanidade correndo nas veias. Efeito que se torna mais luminoso quando se sabe a origem amadora da maioria do elenco, com exceção do ator que faz o pai (João Miguel, de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005). Bastaria este choro para dar a dimensão da leveza e da segurança na condução da narrativa. Ele inclusive poderia evitar a proximidade do foco nas lágrimas de Thiago quando perde o irmão Felipe. Ali elas são previsíveis. A câmera poderia ter ficado mais distante, tal como no momento em que o pai espanca a mãe, e ficamos a par da acusação, dos sons dos tapas e objetos caindo, tudo pela visão do menino. Longe, portanto, do excesso naturalista que fez escola no cinema brasileiro.
Transpor Guimarães para outras mídias é sempre um desafio, pois é preciso privilegiar o diálogo em detrimento da conhecida exuberância verbal e dos contorcionismos lingüísticos de seus narradores. Além disso, é preciso lembrar, no caso de cinema e teatro, da exigüidade do tempo, que é bem mais farto quando nos propomos a encarar as centenas de veredas criadas pelo homem nascido em Cordisburgo (MG) há quase cem anos. Por isso, há de se louvar a opção da diretora em não cair nessa esparrela e utilizar-se de um argumento básico: cinema é imagem. Sendo assim, ela optou pela contenção discursiva, com as falas entrando em momentos muito específicos, permitindo com que seus atores também as substituíssem pelo gestual. O ronco-gemido de Felipe, pouco antes de morrer, é apenas um dos muitos exemplos em que a palavra pode ser cortada, dispensada, tornada impotente, tanto nessa hora de dor quanto para explicar as formas de uma nuvem, os medos oriundos da mata, as causas do assassinato que jogou o pai no oco do mundo.
O sertão roseano está lá do mesmo jeitinho, retratado de forma crua, sem a “estetização da miséria”, outro modismo na ordem do dia por aqui. Sua ligação com a “modernidade” que nos assola vai além da nota de R$ 10,00 que aparece entre os guardados do irmão morto, e que serão enterrados no mesmo chão que o abrigou.
Como destaque do equilíbrio entre palavra, ação e imagem, ainda podemos acrescentar a cena em que o personagem mirim se vê às voltas com um médico da cidade (leia-se Guimarães-personagem) que lhe aponta defeitos na visão e depois lhe oferece seu par de óculos. O esperado seria alguma pirotecnia mostrando o antes e o depois nas imagens. Mas a mudança de perspectiva é apenas interior: “as pedras fica mais grande”. É um ritual de passagem que abre para a possibilidade de cruzar fronteiras, sair daquele lugar onde trabalho infantil é condição natural e a escola é algo que passa ao largo das necessidades. Nesse mundo, contudo, abrem-se brechas para pequenas alegrias: quadrinhas, trava-línguas, brinquedos de madeira, alçapões, ouvir causos dos vaqueiros, rir diante do desempenho do papagaio, observar a ação do milho de pipoca. É pouco, mas substancial, pois assim são reveladas ilhas de delicadeza e solidariedade entre desgarrados, ambulantes de Deus, desvalidos, testemunhas do que se convencionou chamar de “Brasil profundo”.
Depois de ver a entrega da cachorra Rebeca, o papagaio que escapa, o tio aconselhado a sair de casa para evitar uma desgraça, o irmão morto, o pai foragido, o menino Thiago está calejado no exercício do ir-se embora. É hora de largar a saia da mãe para saber “por que as coisas acontecem, então?”. É preciso tocar para outros gerais, decifrar outros mistérios. Encontrar um lugar onde a dor do homem lateje mais devagar. Perto do mar, talvez.
por Jeová Santana
Este ano saí de casa para ver, duas vezes cada, três filmes brasileiros: “Os Dozes Trabalhos” (Ricardo Elias), “O Cheiro do Ralo” (Heitor Dhalia) e “Mutum” (Sandra Kogut). Este, o mais recente, apresenta algumas voltagens emotivas que ainda repercutem e guiam o correr dessas linhas marcadamente impressionistas. Tal escolha não se deve, em princípio, à afinidade com Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), ensaísta, cinéfilo e contista tardio, cuja obra vem sendo reeditada com o cuidado editorial à altura de seu legado. O autor de “Três Mulheres de Três PPPÊS” afirmou que o filme brasileiro, mesmo ruim (o que não é o caso dos que citei), teria sempre algo a dizer sobre nós, daí preferi-lo a qualquer um feito nos Estados Unidos. Pinçada assim, sem referências contextuais, tal reflexão pode despertar, de saída, alguns pruridos ufanistas, mas sabemos que a produção da (ainda) chamada Sétima Arte em terras americanas, não existe somente na linha de montagem de Hollywood, cujo selo final é impresso todo ano naquela patacoada chamada Oscar. A parcela lá produzida que fica fora do chamado “circuitão” é do conhecimento de poucas retinas.
Talvez minha opção pelo produto nacional se deva, de inicio, a recusa à “estética da ligeireza”, marca registrada nas terras de Spielberg & Cia, ao qual já me deixa cansado antes da hora. Qualquer coisa na linha “300” ou “Máquina mortífera” embaralha-me as vistas e não saio do meu recanto sacrossanto para seu ninguém. Nesse sentido, também não me animei a encarar o tiroteio e o corre-corre de “Tropa de Elite”.
Para quem está acostumado com esse tipo opção artístitca, dará nos nervos passar 95 minutos, vendo a leitura que a diretora Sandra Kogut, a roteirista Ana Luiza Martins Costa, o fotógrafo Mauro Pinheiro Jr., o sonoplasta Márcio Câmara, entre outros, fizeram para “Miguilim”, que integra o livro “Campo Geral”, de Guimarães Rosa (1908-1967). O primeiro incômodo vem pelos olhos. Pois os acostumados a viver cercado de prédios por todos os lados, o que torna a palavra “horizonte” apenas um verbete nos dicionários, estranha se vê frente a frente com tanto descampado, logo depois de se sentir na garupa do cavalo que conduz o menino Thiago e seu tio Terez de volta para casa.
O segundo fica por conta da audição, pois depois do trote e do resfolegar, o espectador convive com a profusão de sons de todos os tipos: chuva, vento, raios, trovões, pingueiras, insetos, passos, gemidos, água de rio, bater de portas e janelas, passarinhos, milho de pipoca espocando, aboios, latidos. É uma sinfonia que desestabiliza ouvidos acostumados ao ramerrão dos canos de escapamento e dos bate-estacas. Como contraponto à longa enfiera de ruídos, vem outra gastura diante de várias cenas em que o silêncio se impõe: carinho entre mãe e filho (num close de alta sensibilidade), o enquadramento da casa, a mãe refletindo, a avó Izidra sentada na cama depois de arrumar os trens do neto morto.
Paralelo ao ritmo sonoro, a narrativa vai sendo conduzida com a apresentação de um mote aparentemente parco: um triângulo amoroso, cujo desfecho, pelas leis num tempo e espaço no qual imperam macheza e brutalidade, só pode se encaminhar para a tragédia. Mas, aí, para contrabalançar a crise iminente, o narrador insere o menino Thiago, que será o responsável para prolongar ou interromper a trama, pois fica no fogo-cruzado entre o suposto envolvimento da mãe com o tio. Este, ao contrário do pai, que o cala, ora não respondendo suas perguntas, ora descendo-lhe a mão sem dó nem piedade, é só carinho e não o acusa de “querer ser diferente”.
O ponto culminante da tensão construída com sutileza está na cena em que o sobrinho devolve ao tio o bilhete que deveria ter sido entregue à mãe. O choro com que expõe seu fracasso é um desses momentos sublimes da arte. Sentir-se tocado por ela é saber que ainda temos umas réstias de humanidade correndo nas veias. Efeito que se torna mais luminoso quando se sabe a origem amadora da maioria do elenco, com exceção do ator que faz o pai (João Miguel, de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005). Bastaria este choro para dar a dimensão da leveza e da segurança na condução da narrativa. Ele inclusive poderia evitar a proximidade do foco nas lágrimas de Thiago quando perde o irmão Felipe. Ali elas são previsíveis. A câmera poderia ter ficado mais distante, tal como no momento em que o pai espanca a mãe, e ficamos a par da acusação, dos sons dos tapas e objetos caindo, tudo pela visão do menino. Longe, portanto, do excesso naturalista que fez escola no cinema brasileiro.
Transpor Guimarães para outras mídias é sempre um desafio, pois é preciso privilegiar o diálogo em detrimento da conhecida exuberância verbal e dos contorcionismos lingüísticos de seus narradores. Além disso, é preciso lembrar, no caso de cinema e teatro, da exigüidade do tempo, que é bem mais farto quando nos propomos a encarar as centenas de veredas criadas pelo homem nascido em Cordisburgo (MG) há quase cem anos. Por isso, há de se louvar a opção da diretora em não cair nessa esparrela e utilizar-se de um argumento básico: cinema é imagem. Sendo assim, ela optou pela contenção discursiva, com as falas entrando em momentos muito específicos, permitindo com que seus atores também as substituíssem pelo gestual. O ronco-gemido de Felipe, pouco antes de morrer, é apenas um dos muitos exemplos em que a palavra pode ser cortada, dispensada, tornada impotente, tanto nessa hora de dor quanto para explicar as formas de uma nuvem, os medos oriundos da mata, as causas do assassinato que jogou o pai no oco do mundo.
O sertão roseano está lá do mesmo jeitinho, retratado de forma crua, sem a “estetização da miséria”, outro modismo na ordem do dia por aqui. Sua ligação com a “modernidade” que nos assola vai além da nota de R$ 10,00 que aparece entre os guardados do irmão morto, e que serão enterrados no mesmo chão que o abrigou.
Como destaque do equilíbrio entre palavra, ação e imagem, ainda podemos acrescentar a cena em que o personagem mirim se vê às voltas com um médico da cidade (leia-se Guimarães-personagem) que lhe aponta defeitos na visão e depois lhe oferece seu par de óculos. O esperado seria alguma pirotecnia mostrando o antes e o depois nas imagens. Mas a mudança de perspectiva é apenas interior: “as pedras fica mais grande”. É um ritual de passagem que abre para a possibilidade de cruzar fronteiras, sair daquele lugar onde trabalho infantil é condição natural e a escola é algo que passa ao largo das necessidades. Nesse mundo, contudo, abrem-se brechas para pequenas alegrias: quadrinhas, trava-línguas, brinquedos de madeira, alçapões, ouvir causos dos vaqueiros, rir diante do desempenho do papagaio, observar a ação do milho de pipoca. É pouco, mas substancial, pois assim são reveladas ilhas de delicadeza e solidariedade entre desgarrados, ambulantes de Deus, desvalidos, testemunhas do que se convencionou chamar de “Brasil profundo”.
Depois de ver a entrega da cachorra Rebeca, o papagaio que escapa, o tio aconselhado a sair de casa para evitar uma desgraça, o irmão morto, o pai foragido, o menino Thiago está calejado no exercício do ir-se embora. É hora de largar a saia da mãe para saber “por que as coisas acontecem, então?”. É preciso tocar para outros gerais, decifrar outros mistérios. Encontrar um lugar onde a dor do homem lateje mais devagar. Perto do mar, talvez.
Jeová Santana (1961) nasceu em Maruim (SE). É autor dos livros de contos Dentro da casca (1993), A ossatura (2002) e Inventário de ranhuras (2006). É mestre em Teoria Literária pela Unicamp. Atualmente é doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política e Sociedade da PUC/SP. E-mail: jeopoesi@bol.com.br
Fonte: Cronópios
Mutum - Trailer
2 comentários:
Ótimo texto! É muito bom ver alguém expressar com palavras aquilo que se sentiu, mas não verbalizou. O filme é uma preciosidade, daquelas que a gente tem que admirar apoiando-se no mesmo ritmo do tempo..que passa de forma diferente na tela. Parabéns!!
Eu assisti o filme na sala de aula com os meus colegas de classe e minha professora. Confesso que ouve muita conversa durante o filme e por isso nao compreendi o que o filme queria passar para quem assistia. Quando tiver um tempo eu assisto em ksa com mais atençao e comento sobre o que eu achei...
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