segunda-feira, 7 de abril de 2008

Os filmes como moeda

Matéria interessante de Ana Paula Sousa, publicada na revista CartaCapital.

Os filmes como moeda
por Ana Paula Sousa

Atividade escorada em incentivo público, o cinema brasileiro vê-se, vira e mexe, metido em discussões sobre a legitimidade de certos modelos de apoio. Nos anos 2000, houve polêmicas, por exemplo, em torno do artigo 3º da Lei do Audiovisual – que permite às majors de Hollywood a aplicação de dinheiro de imposto em produção – e dos concursos destinados a partilhar as verbas das estatais. Pois, agora, uma nova fonte de financiamento deixa o setor de orelhas em pé: os Funcines.

Se a Lei do Audiovisual, criada em 1993 para ressuscitar o cinema afundado por Collor, acoplou ao cenário a figura do diretor de marketing, incumbido de decidir que filmes mereciam patrocínio, os Funcines moldam outro personagem de terno e gravata, o investidor financeiro.

O novo mecanismo, como o nome anuncia, é um fundo dedicado ao audiovisual. O primeiro deles, operado pelo Banco do Brasil, nasceu em 2004. Mas só agora o sistema vingou de fato. Neste momento, quatro Funcines estão cadastrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com um patrimônio total de 32,6 milhões de reais.

O mais polpudo e antigo em operação é gerido pela Rio Bravo, companhia criada por Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. O RB Cinema 1 injetou dinheiro em filmes como O Maior Amor do Mundo (2006), Querô (2007), O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2007) e Desafinados, ainda inédito. Outros virão.

A despeito de serem geridos por investidores privados, os fundos são tema público por uma simples razão: podem se beneficiar de um incentivo fiscal que permite dedução de 100% do Imposto de Renda devido pelas empresas. Quando nasceram, o teto de dedução ficava na casa dos 60% e, provavelmente por isso, pouquíssimo interesse despertaram.

“O incentivo é meu argumento de venda”, afirma Gustavo Catão, analista da Rio Bravo. O que ele diz aos possíveis cotistas? “Em vez de pagar o imposto, você coloca o dinheiro num Funcine e eu posso retorná-lo para você.” Na definição do próprio analista, “é um argumento irresistível”.
Não é demais lembrar que imposto que deixa de ser pago é, em tese, dinheiro público. Como 20% dos fundos podem ser investidos em títulos e, enquanto os filmes não são feitos, todo valor fica aplicado, há quem questione o rumo das operações. “Mesmo que o filme seja um fracasso de bilheteria, o investidor vai ganhar. Os investidores que não põem dinheiro próprio têm rentabilidade garantida”, pontua o cineasta André Klotzel, integrante da diretoria da Associação Paulista de Cineastas (Apaci).

O presidente da entidade, Ícaro Martins, vai além. “Do jeito que está, o mecanismo tem todas as condições para se tornar um esquema de lavagem dinheiro. Ele deixa brechas para achaques e atrai todo tipo de aventureiros do mercado de capitais. Se nada for feito, os Funcines podem virar o grande escândalo do cinema brasileiro”, alerta.

O temor se estende para outros produtores e cineastas, que, em público, preferem não meter a mão nessa cumbuca. O presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Manoel Rangel, por sua vez, aplaca os ruídos da possível polêmica.

Questionado sobre a legitimidade de se colocar dinheiro 100% incentivado na roda financeira, ele joga sobre a mesa, como contra-argumento, todos os incentivos fiscais. “Me parece uma pergunta capciosa. O dinheiro não tem como destino o mercado financeiro, ele tem obrigação de ser investido em filmes”, frisa. “Não há diferença de legitimidade em relação ao artigo 1º da Lei do Audiovisual. Quem questiona o Funcine deveria questionar a Lei do Audiovisual. Ambos usam dinheiro público. Um fica na mão de um investidor. Outro, na de um produtor.” Talvez esteja aí o nó da questão.

Se no artigo 1º o interesse dos investidores passava pelo possível ganho de imagem da marca, no Funcine a idéia é ganhar dinheiro a partir de dinheiro. Mas a Lei do Audiovisual, prorrogada até 2010 – o prazo inicial era 2003 –, nunca conseguiu criar a cultura do investimento sem incentivos. Por que os Funcines conseguiriam?

“Nos Funcines, a lógica é outra. Os recursos são administrados por gestores que buscam rentabilidade e, ao mesmo tempo, seguem parâmetros de política pública”, diz Rangel. Para quem teme que os fundos roubem patrocinadores do produtor independente, Rangel assegura: “Não é o que tem ocorrido. Os dados demonstram que os Funcines se desenvolvem paralelamente e têm atraído novos investidores”.

Mas, por enquanto, boa parte do dinheiro veio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Só para 2008 o banco prevê um investimento mínimo de 25 milhões de reais em Funcines. Luciane Gorgulho, chefe do Departamento da Cultura da instituição pondera que, em 2007, apenas um terço do dinheiro dos fundos usou o mecanismo de dedução fiscal e anota que os editais de financiamento continuam.

“O BNDES tem uma carteira de investimentos em fundos de 1 bilhão de reais. Os Funcines são um investimento pioneiro, que sinaliza para o mercado uma oportunidade de negócio. O objetivo é fazer o cinema se desenvolver como setor econômico”, explica Gorgulho. “Também não pretendemos investir em todo e qualquer Funcine, mas naqueles que contribuem para os gargalos da indústria, como a distribuição.”

Foi esse o caso do fundo Lacan-Downtown, destinado à distribuição de filmes brasileiros. Hoje, têm poder de fogo nas salas de cinema basicamente os filmes distribuídos por majors, como Columbia e Warner. Esse Funcine, visto como uma nova alternativa para colocar os títulos nas telas, recebeu 8 milhões de reais do BNDES e captou 4,6 milhões com dez empresas, todas estreantes no setor audiovisual.

“A captação direta, feita pelos produtores, desestimulou as empresas a investir, até porque, se colocasse 500 mil reais num projeto, o patrocinador desaparecia no meio de vários outros”, avalia Bruno Wainer, distribuidor e idealizador desse Funcine. Para reforçar a idéia de que o novo investimento não se dá por razões institucionais e sim financeiras, ele informa que, dos dez investidores, oito declaram não querer retorno de imagem.

“Minha responsabilidade é oferecer o maior retorno aos investidores. Estou buscando o melhor negócio possível. Existe um erro qualquer no cinema brasileiro que faz com que se produza sem responsabilidade de retorno”, prossegue Wainer. Em 2007, foram lançados 82 títulos nacionais. Desses, 49% fizeram até 10 mil espectadores e 32% ficaram na faixa entre 10 mil e 100 mil ingressos.

Os investidores, de modo geral, parecem querer tirar do cinema um lucro que, fora de Hollywood, ele muitas vezes não dá. Paulo Bylik, sócio da Rio Bravo, diz que aplica em cinema como em ossos de titânio e software de telefonia. Até por isso, trata como periférico o incentivo fiscal – a despeito de tê-lo usado. “Essa é uma muleta sobre a qual o cinema brasileiro se apóia e que não leva a lugar nenhum. Para quem quer produzir um filme de sucesso, a conta do Imposto de Renda é subsidiária.” Será?

Todos sabem que, por ora, sem incentivo fiscal, a produção – às vezes negócio, outras tantas vezes cultura – definharia. Num País em que 90% dos municípios não têm sala de cinema e a tevê aberta não compra filmes nacionais, raros são os títulos que se pagam. O próprio RB Cinema 1 só teve retorno financeiro com O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.

Não à toa, as dificuldades de se conciliar interesses entre cineastas e homens de finanças começam a surgir. Os produtores de filmes menores nem procuraram nem foram procurados por Funcines. “Tudo o que conseguimos foi captado pela Paula Lavigne”, diz Giba Assis Brasil, da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora dos filmes de Jorge Furtado. “Esse é um negócio que funciona onde tem dinheiro. Não temos acesso a essas negociações.”

Mesmo Luiz Carlos Barreto, o mais famoso produtor brasileiro e um dos articuladores dos Funcines, tem tido dificuldades de negociação. “Os Funcines são uma fonte fundamental de financiamento, mas algumas propostas são inaceitáveis. Eles querem, por exemplo, prioridade no resgate da receita dos filmes”, relata.

À necessidade de regulamentação, a Ancine responde com uma consulta pública. A partir das manifestações do setor, deve ser publicada uma nova instrução normativa para definir alguns parâmetros dos futuros contratos. É o cinema-negócio estreando.


Fonte: CartaCapital

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