Sí, se puede!
por Luísa Pécora
A seleção de futebol do Equador venceu a brasileira pela primeira vez na história durante as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002. Durante a inesquecível partida, a torcida gritava em um impressionante uníssono: "Sí, se puede! Sí, se puede!"
O grito de guerra virou o nome de uma geração de cineastas equatorianos que resolveu convencer instituições privadas e públicas de que o cinema precisava de tanto investimento quanto o esporte.
O maior nome dessa turma é Tania Hermida, que com Que tan lejos, lançado no ano passado, provou que um filme equatoriano pode ser sucesso de crítica e de público - e até dar lucro financeiro. Vencedora do prêmio do júri popular no 2º Festival de Cinema Latino-Americano, realizado em julho em São Paulo, ela comemorou o aumento da produção do país e a Lei Nacional de Cinematografia, criada em 2006
A CULT convidou Tania para um bate-papo com outra mulher de destaque no cinema latino: a paraguaia Galia Gimenez, que trouxe seu terceiro longa-metragem, El invierno de Gunter, para o Festival de Cinema Latino. No país de Galia, há apenas um fundo de apoio à cultura, que se dedica não apenas ao cinema, mas também à música, à literatura, às artes plásticas e ao teatro.
Durante a conversa, elas discutiram, ainda, como é fazer cinema na América Latina sendo mulher, já que, em todo mundo, as diretoras continuam sendo minoria.
CULT - Na América Latina, a mulher tem mais dificuldades para fazer cinema?
Tania Hermida - Acho que no Equador é difícil fazer cinema tanto para os homens quanto para as mulheres, porque o mais complicado é conseguir recursos. Particularmente, fui criada em uma família de três filhas mulheres e um pai feminista. Não fui criada com a idéia de que ser mulher fosse impedimento para nada. No entanto, o Equador é um país machista, e muitas mulheres crescem acreditando que ser mulher é uma desvantagem natural. Eu tive a sorte de crescer em um contexto diferente. Aliás, no Equador, entre os jovens cineastas, há muitas mulheres. No ano passado estrearam dois filmes de ficção, ambos dirigidos por mulheres, e três documentários, dois deles também de mulheres. É engraçado: os diretores de fotografia e os sonoplastas são sempre homens, as produtoras e as diretoras são quase sempre mulheres. Parece estar havendo uma divisão de papéis, em que as funções mais técnicas ficam com os homens. E acho importante notar que no cinema independente há muitas diretoras, mais do que na indústria. Isso porque o projeto da indústria é econômico e tem padrões fechados em relação à forma de trabalhar e pagar.
Galia Gimenez - Na minha opinião, a gente nem tem que pensar nessa questão de ser mulher. Só temos de lidar com as situações que eventualmente aparecerem.
CULT - E quanto ao lado pessoal? É difícil conciliar a família e o trabalho?
Tania - Eu casei e me divorciei, mas não tenho filhos. Para mim, é muito difícil combinar a maternidade, a família, a casa e o jardim com os filmes, as viagens, a instabilidade econômica e as incertezas emocionais. Eu optei pela minha paixão, que é o cinema.
Galia - Penso da mesma forma e tenho certeza de que não quero ter filhos. Chega uma hora em que a mulher tem que tomar uma decisão sobre isso. Eu já estou em outra.
CULT - Quais diretores vocês admiram?
Galia - Há diretores que realmente me fascinam. Gosto muito do Buñuel, revejo seus filmes e sinto uma grande emoção. Também gosto do Kurosawa, do realismo italiano e de muitos diretores russos como o Tarkovski, que é fantástico. Ele estava muito além da sociedade em que vivia.
Tania - O Tarkovski pra mim é um maestro. Ninguém se compara a ele.
CULT - Não citariam nenhuma mulher?
Galia - São tão poucas...
Tania - Das últimas gerações, gosto da argentina Lucrecia Martel, diretora de O Pântano.
Galia - Não conheço. No Paraguai é muito difícil ver filmes latinos. Eles não chegam aos cinemas, no máximo passam na televisão. É horrível, porque estamos tão perto e não conseguimos nos assistir. Eu nunca vi um filme brasileiro no cinema e estou há quinze anos em Assunción. Central do Brasil e Cidade de Deus só vi pela televisão.
Tania - No Equador chegam filmes brasileiros. Gostei muitíssimo de Lavoura Arcaica, que saiu no mesmo ano de O Pântano. Me lembro de ter visto os dois filmes e pensado: "o cinema latino-americano tem futuro".
CULT - Aqui no Brasil, reclama-se muito de que os filmes brasileiros chegam às salas em número muito menor que os hollywoodianos.
Galia - Na aparência, o Brasil parece ser um país de muita cultura, até porque é um país muito grande. Acho que vocês devem falar muito dos defeitos do Brasil, mas a presença do Brasil é muito importante para a América Latina. O Paraguai está começando a aparecer, a difundir sua cultura.
Tania - O Brasil é um continente. É uma referência para os outros países latinos. O Paraguai e o Equador estão começando a deixar de ser invisíveis, inclusive para nós mesmos. E aí está a importância da Internet, dos novos canais de comunicação. No Equador, grande parte dos meios de comunicação é controlada pela direita e pelo Estado, então as pessoas se informam pela Internet, pelos blogs.
Galia - E também está aí a importância dos festivais de cinema. É a chance que nós temos de nos encontrar, de conversar, de vermos os nossos filmes.
Tania - Os festivais são o único espaço soberano do cinema latino-americano. Está surgindo uma produção muito forte, com outros discursos, mas é preciso que todas as instituições dêem ao cinema o apoio e a seriedade que ele merece.
Galia - No Paraguai a cultura está em último lugar. Não há apoio nenhum, o que não significa que as pessoas não gostem de cultura. A população tem interesse, mas não há apoio e nem espaços. Os empresários, por exemplo, não apóiam! E não é só com cinema. Com música é a mesma coisa. No Paraguai todo mundo é músico, mas ninguém grava disco. É um verdadeiro mal social, uma falta de consciência. Por isso que a produção é importante. Temos que produzir, produzir e produzir. Estou tendo experiências lindas ao exibir meu filme. A aceitação é impressionante, são igrejas e colégios abarrotados. É contraditório porque não há apoio, mas há interesse.
CULT - Esse cenário parece ser comum a toda a América Latina.
Tania - Acho que há razões históricas para isso. Quando nos constituímos como repúblicas, o projeto não era criar uma cidadania criativa e sim assegurar os privilégios das classes dominantes. Não era um projeto que pensava na cultura. Hoje vemos que o interesse pela cultura é forte, mas o projeto do estado não apontava isso. Nos anos 1940, criaram a Casa da Cultura Equatoriana, um projeto que foi muito importante porque deu valor aos ancestrais indígenas e à diversidade de culturas. Naquele momento, o discurso era: vamos conservar a cultura, preservar a identidade e levar a cultura ao povo. O que estamos fazendo agora é uma mudança de paradigmas. A cultura não é algo que devemos apenas preservar, a cultura é algo que temos que produzir. A tradição se reinventa! A identidade se cria! E não é só levar a cultura ao povo: é colocar o povo para produzir cultura.
Fonte: RevistaCult
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